"Homofobia? A culpa é sua que é viado e dá pinta"
Matéria da Folha de S. Paulo sugere, por motivos de “segurança”, que gays não sejam afeminados e não se beijem em espaços públicos para evitar ataques homofóbicos
Publicado por Marcelo Hailer
Neste domingo, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma reportagem sobre os recentes ataques homofóbicos na região da rua Augusta (SP), local onde há forte concentração de LGBT. Até aí, tudo bem. Mas a coisa complica com um box que acompanha a reportagem principal e dá dicas de “estratégias de segurança”, com recomendações como “- Andar sempre em grupos: ter amigos por perto pode intimidar agressores; – Evitar lugares abertos. Ir a locais fechados sempre que possível para aumentar a segurança; – Não dar pinta: alguns trejeitos podem atrair criminosos; – Evitar andar de mãos dadas e dar beijos em locais públicos”.
Ou seja, o “guia de segurança” do jornal paulista não passa de um “volte pro armário” disfarçado de “manual das boas intenções”. Quem anda minimamente pela Frei Caneca e região sabe que inúmeros casais andam de mãos dadas, trocam beijos e dão muito pinta. O que é tranquilo e normal. Porém, quando um periódico de grande circulação dá amplo destaque para “evitar andar de mãos dadas”, fica a impressão de um desejo de livrar do espaço público o afeto entre iguais. Por que, ao invés de pedir aos LGBT para dissimularem o que são, a publicação não centrou fogo na questão de segurança pública, educação sobre diversidade sexual nas escolas, políticas públicas? Pior, o jornal joga o ônus da violência homofóbica nas vítimas dos crimes de ódios.
Logo, se você é gay, afeminada a culpa é sua se for vítima de um ataque homofóbico. Em entrevista com a Fórum, a socióloga e pesquisadora de estudos feministas pela PUC, Carla Cristina Garcia, disse que é “absurdo em plena época de recrudescimento do conservadorismo no Brasil um jornal de grande circulação publicar um texto desse”. Segundo Garcia, a lógica da matéria é a mesma para as mulheres vítimas de abuso sexual. “É igualzinho se proteger contra o estupro: não saia sozinha, não saia com pouca roupa. Já com os gays eles têm que ser macho, não podem dar pinta”, critica a socióloga.
O filósofo Giorgio Agamben aponta que a modernidade vive sob o “paradigma do campo de concentração”, os espaços são organizados como guetos e destinados a certos tipos e isso não pode ser violado. O espaço público tem orientação sexual, classe e cor, e são destinados a receber tais corpos: sujeitos periféricos não podem ir ao shopping, mulheres não podem frequentar campos de futebol, e as bichas, agora, nem nos guetos podem ficar, devem ficar em locais fechados, escondidas, assim, quem sabe, a homofobia desaparece… E público LGBT também. O espaço público como conhecemos é e sempre foi construído a partir da divisão de gênero (masculino X feminino) e com base em uma única orientação sexual (heterossexual), o resto são expressões demoníacas que perturbam a via pública.
O texto do jornal deixa claro (e agora mais do que nunca) um viés ideológico tipicamente liberal e conservador: sim, você pode ser homossexual, mas não pode parecer como tal. E, ao fim e ao cabo, as dicas da publicação são completamente coerentes com seu histórico do publicação que, sob a premissa da “liberdade de opinião” e de ser um “espaço plural” já publicou inúmeros textos do pastor Silas Malafaia, declaradamente homofóbico. O que está em jogo também é uma disputa de sociedade: de um lado branca, heterossexual e burguesa; do outro, liberta, mestiça e livre das classificações e da sociedade de controle.
“Num momento em que os movimentos sociais do mundo inteiro pedem para as pessoas saírem do armário, vem o jornal Folha de São Paulo e manda todo mundo voltar pro armário?”, indigna-se Garcia. Outro ponto que a professora toca diz respeito ao espaço público e a quem ele de fato pertence. “A rua pertence ao macho”, afirma a professora. Esta lógica é comprovada quando pensamos na maneira como as mulheres são assediadas no espaço público e, agora, constatamos que as bichas afeminadas também não podem estar nele, pois é melhor evitar “locais abertos”, privilegiando os espaços fechados. Esconda-se.
Se você apanhou, a culpa é sua, que é viado e ainda por cima dá pinta na rua. Não pode, tem que ser macho e se adequar ao modelo heteronormativo. Isso não está escrito, mas é o que se lê nas entrelinhas de quando o jornal diz “evite dar pinta” e por favor, seja másculo e não nos envergonhe. Então, o que fazer com as travestis e transexuais? E as meninas que não seguem os padrões normativos de feminilidade? A pobreza conceitual do texto é tamanha que, ao invés de propor e ou provocar um debate sobre os vários tipos de existência corporal e coexistência, pede-se aos sujeitos sexodiversos que desapareçam do espaço público e o deixem limpinho e homogêneo, assim como pensavam os eugenistas do século XIX.
Num momento em que até a novela (produto conservador) da Rede Globo resolveu dar um passo para fora do armário com duas bichas pintosas (Felix e Niko) e com o beijo entre as personagens que obteve uma forte aceitação popular, o jornal resolve dar inúmeros passos pra trás. Obviamente que as “estratégias de segurança” causaram revolta e nas redes uma campanha foi criada. Mas, a pergunta que não quer calar: a serviço do que este texto, que manda bichas não serem afeminadas e não se beijarem nas ruas, foi publicado? A quem serve retirar o público LGBT do espaço público?